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25 de Abril de 2024

Nós, os Advogados, por eles, os Juízes: De um ex-advogado para os advogados Min. Luís Roberto Barroso

Fonte: Advocacia HJ. | N. 001 | JUN. 2019 - páginas 70/74

há 3 anos

Trinta anos de advocacia e seis de magistratura, fui advogado por quase trinta anos. Comecei na planície. Estagiei na Defensoria Pública, no cível e no crime. No início da minha carreira, fiz separação judicial, divórcio, júri, fui a delegacias, impetrei habeas corpus, propus e defendi reclamações trabalhistas. Por um ano, coordenei a área de família do escritório modelo de uma instituição privada. Voltava para casa angustiado todos os dias. O Direito não é capaz de resolver todos os problemas da vida.

No início da minha advocacia privada, tive a sorte de trabalhar com dois grandes profissionais: Miguel Seabra Fagundes, jurista e parecerista notável, e Eduardo Seabra Fagundes, um advogado do primeiro time. Foram quatro anos de aprendizado que me serviram por toda a vida. Em 1984/85 prestei concurso para a Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, onde ingressei em 1985.

“ O maior perigo, para a maioria de nós, não é que o alvo seja muito alto e não se consiga alcançá-lo. É que ele seja muito baixo e a gente consiga.”

Paralelamente, dediquei-me à vida acadêmica, que sempre foi uma das minhas paixões.

Foi precisamente a minha paixão pelo direito constitucional que me abriu caminhos até então imprevistos. Meus primeiros trabalhos acadêmicos de maior expressão foram sobre a efetividade das normas constitucionais, isto é, os limites e possibilidades de concretização da Constituição. Era um tempo em que os advogados nem tinham Constituição no escritório.

Os civilistas usavam o Código Civil e o Código de Processo Civil. Os criminalistas, o Código Penal e o Código de Processo Penal. Os advogados trabalhistas utilizavam a CLT. O direito societário começava a se desenvolver, após a promulgação da Lei da Sociedades por Ações. Pois bem: em um dos meus primeiros casos, comecei a trabalhar com a Constituição.

Lembro-me ainda hoje: postulei a anulação de um ato administrativo do diretor do Observatório Nacional, que criara obstáculo à pesquisa de seu principal astrônomo, com entraves burocráticos. Invoquei o art. 179, parágrafo único, da Constituição de 1967/69, que previa que “O Poder Público incentivará a pesquisa e o ensino científico e tecnológico”. Sustentei, então, que normas conhecidas como “programáticas”, como esta, não permitiam que se exigisse um comportamento positivo.

Porém, serviam como fundamento para se exigir uma abstenção, isto é, que o Poder Público não embaraçasse a pesquisa. Deu certo e foi feito um acordo. Começava ali um novo ramo de atividade jurídica, que era o do advogado constitucionalista.

Por um bom tempo trafeguei quase sozinho nesse novo espaço profissional, dando pareceres, elaborando recursos extraordinários para outros escritórios ou propondo ações com fundamento na Constituição.

Com o tempo, a vida me propiciou testar muitas das ideias que havia desenvolvido academicamente em ações perante os tribunais, inclusive o Supremo Tribunal Federal. Entre os casos demais visibilidade estiveram, por exemplo, (i) o direito de as mulheres interromperem a gestação no caso de gravidez de um feto anencefálico e, consequentemente, inviável; (ii) a proibição do nepotismo no Poder Judiciário (depois estendida aos três Poderes); (iii) a equiparação das uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais; e (iv) a defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Todos eles envolviam a aplicação direta e criativa da Constituição.

Esses casos me tornaram mais conhecido e pavimentaram meu caminho para a magistratura no Supremo Tribunal Federal. E, mais à frente, já como ministro, segui fiel às minhas ideias, em decisões envolvendo ações afirmativas para negros, direitos das mulheres, gays e transgêneros, liberdade de expressão, restrição ao foro privilegiado e direito à interrupção da gestação no primeiro trimestre, para citar algumas.

Aceitei com gosto a missão de ser juiz, mas não foi fácil a mudança de lado. Um advogado só precisa julgar a causa uma única vez: no momento em que a aceita ou não. A partir daí ele se obrigou a atuar de um lado da disputa e tem o dever legal de apresentar todos os argumentos legítimos, razoáveis e éticos na defesa do seu cliente.

Aprendi logo no início da minha vida de juiz que ter lado é mais fácil do que procurar ser imparcial. Um juiz – sobretudo quando também atua no crime – precisa considerar os direitos fundamentais do réu, mas não pode esquecer que ele é o guardião da próxima vítima, ou seja: cabe-lhe impedir que mais alguém seja morto, violentado ou que o erário seja saqueado. Ele passa a ser árbitro em um mundo de paixões. Para mim, pessoalmente, significou deixar de ser um advogado popular entre os colegas para me tornar um juiz que inexoravelmente desagrada muita gente. Foi um choque existencial.

Mas é a missão que a vida me deu. Fui o melhor advogado que consegui ser. Procuro ser o melhor juiz que consigo ser.

Já há alguns anos na magistratura, conservo largamente a alma de advogado. Gosto de exemplificar esse sentimento com uma história real que se passou comigo quando me mudei para Brasília. Meus filhos, que eram ainda bem jovens, insistiram em um passeio de barco pelo Lago Paranoá. Minha mulher escapou do programa, mas preparou um isopor com refrigerantes, águas e, creio, umas duas cervejas.

Já no meio do lago, apoiei minha perna no tal isopor, que era de péssima qualidade, e ele ruiu. Voltei para casa sobraçando cacos de isopor e disse para minha mulher: “Pisaram no isopor! Veja como ficou”. Mas as mulheres têm alma de Ministério Público. E ela imediatamente me perguntou: “Quem pisou?”. Ao que respondi prontamente: “Estou aqui para defender o isopor, e não para acusar ninguém”. Pano rápido. Isto é ter alma de advogado.

Hoje, como juiz, compartilharia com os advogados convicções que tinha quando atuava do outro lado do balcão, e que mantenho até hoje. Algumas delas:

1. Advogados são a alternativa que o mundo civilizado concebeu contra a força bruta. Em lugar de lutas físicas, disputa-se com o melhor argumento. Advogados são agentes do processo civilizatório. Por isso mesmo, seja sempre elegante. Uma tese não se torna mais convincente por ser enunciada aos gritos ou de modo grosseiro.

2. Tudo o que é certo, justo e legítimo deve encontrar um caminho no Direito. O papel do advogado é achar esse caminho. Um advogado não se conforma com interpretações literais, com portas fechadas ou juiz de cara feia. Há uma força poderosa no universo que protege quem se move por propósitos honestos.

3. O advogado não se confunde com seu cliente. Muito menos é seu cúmplice ou compartilha-lhe as culpas. O advogado desempenha uma função essencial à justiça, permitindo que o direito de defesa e o contraditório sejam exercidos. De modo que a reprovação social ou moral que o cliente possa eventualmente merecer não se transmite ao advogado. Não há causa imoral. Não importa o que o cliente tenha feito. O que pode haver é conduta imoral do advogado. Mas aí, por mérito próprio. A que seja imputável apenas ao cliente não se transmite ao advogado.

4. Escreva com clareza, simplicidade e objetividade. Já foi o tempo em que escrever e falar difícil era sinal de inteligência. Hoje é justamente o contrário. E, sobretudo, seja tão breve quanto possível.

5. A gente não ganha todas. E há vida depois da derrota e muitas lutas após a vitória. Seja humilde na vitória e altivo na derrota. Não ofenda ninguém, mesmo quando acreditar ter razões para isso. A vida nos faz passar muitas vezes pelas mesmas estações e é bom deixar o caminho desobstruído.

6. O advogado deve olhar o mundo do ponto de observação de seu cliente. Isso não dá a ele o direito de mentir. As pessoas, na vida, têm direito à própria opinião, mas não aos próprios fatos. Mas há um aspecto relevante: a verdade não tem dono e, em muitas situações, não há certezas absolutas. Somente diferentes modos de ser ver a questão.

7. Eu considero que o maior advogado do Brasil é anônimo e trabalha, com recursos escassos e sem holofotes, em alguma comarca do interior. Provavelmente lutando contra a prepotência de algum poderoso.

São essas as breves reflexões que me ocorrem. Fui muito feliz na advocacia. E cumpro com alegria a missão que a vida me deu de ser juiz no Supremo Tribunal Federal. Mas até hoje me emociono ao ouvir uma sustentação precisa ou uma peça bem lançada. Às vezes acho que meu coração ficou do lado de lá.

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4 Comentários

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Parabéns Dra por resgatar palavras tão necessárias aos dias de hoje e renovar os votos da atuação profissional.
Muito obrigada! continuar lendo

Obrigada Dra. Otilia, a intenção foi essa, precisamos nos lembrar porque escolhemos essa valorosa profissão. Obrigada por acompanhar a página! continuar lendo

Belas palavras. Uma colher de ânimo, de certa forma, em seguir firme com a advocacia. continuar lendo

Exatamente Dr. Alessandro, foi com essa intenção que fiz a postagem dessa noticia! Obrigada por acompanhar a página! continuar lendo